Castings vs entrevistas de trabalho
Um casting não é como uma entrevista de trabalho.
À vista desarmada
pode parecer que sim, mas uma vez aventurada na experiência “vou tentar ganhar
uns trocos extra como modelo porque toda a gente me diz que devia ser modelo”,
posso garantir que não.
Também posso garantir que o que toda a gente diz não conta
para nada. As únicas pessoas que importam são o cliente e os diretores de
casting.
Mas deixai que vos explique melhor isto dos castings e verão
que vai ser bem mais difícil invejar modelos, actores e todas as pessoas cuja
profissão depende deste sistema cruel.
Para começar, os castings são sempre em sítios fora de mão,
em ruas onde Judas perdeu as botas, a várias estações de metro de distância, em
meandros onde até o Goggle Maps anda às voltas.
Após várias tentativas à
procura do “estúdio” de casting, o que encontramos é uma garagem ou uma cave,
sem nenhum tipo de climatização e com escassa iluminação. A sala de espera é sempre
estreita e apertada, com queda para o claustrofóbico, enfeitada apenas com
cadeiras da feira de Encants de há dois anos e uma mesa onde jazem um papel e
uma caneta, para que os modelos se inscrevam no casting. Nome, agêcia, idade,
altura. Depois é só esperar,
indefinidamente, que alguém venha lá de dentro e nos chame.
Não é uma espera agradável.
O ambiente é deprimente. Estamos rodeados de outros aspirantes que nos
fitam avaliando se somos uma ameaça ou não. Nós pensamos o mesmo. Mas quem será
que enviou aquela? E esta, o que é que vem cá fazer com estes sapatos,
flamenco? E aquela eu conheço-a, era só
que me faltava ter cá gente conhecida agora. Eh pah aquela é mesmo gira, e
aquela é tão mais alta que eu, e aquela tão mais nova e outra tão mais magra...
mais vale ir já embora que aqui não tenho nenhuma hipótese... e assim se passam horas, minutos ácidos
de ângustia, nervosismo, tensão e suores difíceis de controlar, devido há supramencionada
falta de climatização.
Já numa entrevista de trabalho, as empresas costumam estar
situadas em locais de fácil e conhecido acesso. Também costumam ocupar todo um
edifício, ou pelo menos todo um andar, e ter luz, ar condicinado e salas de
espera dotadas de cadeiras com estofos e até mesmo quadros na parede, jornais e
revistas. Bem como uma recepção onde nos informam o que temos de fazer e quanto
tempo teremos de esperar, sendo que o tempo de espera também está mais ou menos
pré-definido, de acordo com a hora a que a entrevista foi marcada. Aceitam-se
alguns parâmetros de atraso, mas, regra geral, não chegam a ser horas. É certo
que também podemos estar nervosos e medir-nos visualmente com outros eventuais
candidatos que tenham vindo à mesma hora. Mas nada na nossa cara, pontas espigadas
do cabelo ou vestuário, deixa transparecer o que diz o nosso currículo.
Quando entramos no casting, sempre com mais 4 ou 6 modelos,
mandam-nos para debaixo dos holofotes em frente da câmara, com um fundo branco
atrás e uma marca no chão onde nos temos de colocar. Dão uma ou duas instruções
apressadas e em menos de nada estão a gravar a nossa apresentação. Não há cá
olá, tudo bem, sente-se se faz favor, então vimos o seu currículo e queremos
saber mais sobre si. É como é que te chamas, dá um grande sorriso, diz 3
palavras sempre a olhar apra a câmara, dá um grande sorriso, vira-te para a
direita, vira-te para a esquerda e dá uma volta. Mostra as mãos. Não, assim
não. Mais perto, mais longe, mais para cima, mais para baixo. E se as mãos
deixassem de tremer também dava mesmo jeito. Ah, e um grande sorriso!
Depois vem a diferença crucial entre um casting e uma
entrevista de trabalho. Numa entrevista de trabalho nós sabemos o que nos vão
perguntar e o que nos podem pedir para fazer. Vão fazer perguntas sobre o que
estudámos e os trabalhos que tivemos, vão pedir para falarmos dos nossos pontos
fortes e fracos, de como superar situações de crise. Se pedirem provas serão
provas relativas ao que sabemos fazer, que rápidamente podemos executar/demonstrar. Às vezes um teste de cultura geral que nos
pode apanhar desprevenidos, mas essa será a maior surpresa que nos poderemos
encontrar numa entrevista de trabalho.
Agora num casting, num casting podem pedir qualquer coisa! O
céu é o limite! Tudo pode acontecer! E tudo o que acontecer tem de ser a olhar
para a câmara, com o corpo desinibido e natural e, adivinhem, um enorme sorriso no final. Seja beijar um
desconhecido, improvisar uma atuação, dançar com um mixer de cocktails, pular
como se estivessemos a ver uma corrida de fórmula 1, fingir que estamos a beber
champanhe de um copode plástico vazio e em roupa interior, fazer uma cara
irónica a falar de hamburguers, seguida de uma cara de dúvida, seguida de uma
cara de surpresa e sempre sem parar de falar dos hamburgers. A lista é infinita
e surreal. E, obviamente, as nossas prestações nunca são exatamente como o que
eles têm em mente, pelo que nos mandam repetir, repetir, repetir. Às tantas já
não sabemos como é que podemos estar a fazer mal, algo tão simples como dar 3 passos e
sentar-nos numa cadeira. Então olhamos
para o diretor de casting para ouvir o que temos de fazer e CORTA outra vez,
porque temos de estar sempre a olhar para a câmara.
Antes assim, para não termos de ver a frustração ou a
vontade de rir, agarrada aos olhos de quem nos observa.
E tudo isto passa de rompante. De repente dizem, ”já está” ou
“próximo”, e essa é a única despedida a
que temos direito.
Enquanto isso, na
entrevista de trabalho, temos o entrevistador só para nós, somos donos da sua
atenção, temos margem para conquistá-lo e, a menos que ele seja estrábico, não
há como enganar na direção em que temos de olhar. Por fim, por muito mal que a
entrevista possa correr, há sempre uma contenção social que proíbe que o nosso
interlocutor se desmanche a rir na nossa cara e que o obriga a processar algum
tipo de feedback, acompanhado por uma palavra de despedida que, realmente,
significa despedida.
Depois da entrevista, se não tivermos novidades, podemos
sempre ligar ou mandar um email.
Depois do casting, não podemos fazer nem perguntar nada. Até
porque nem sequer sabemos os nomes das pessoas que nos fizeram o casting. Revivemos mentalmente e até a exaustão a figura que fizemos, passo por passo, com a irregevogável certeza de que assim que a câmara começou a gravar, parecíamos um pato robótico.
A
próxima vez que vamos ter notícias, será quando virmos a campanha na televisão,
com alguém que não somos nós.
Só porque sim.
Posto isto, lanço desde aqui uma grandessíssima vénia a
todos os modelos que andam a saltitar de casting em casting. Pela paciência
para aturar intermináveis horas de espera, pelo estômago para aguentar todo o tipo de
rejeições, pela força de vontade para continuar a ir aos castings, sabendo que
são um entre centenas de concorrentes, e pela preserverança de, no meio disto tudo, continuar a
correr, a fazer abdmoniais e a resistir como uns campeões aos fritos e às gorduras!
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